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Seis desafios de morar em um veleiro

Seis desafios de morar em um veleiro

por Tamara

Cada vez mais me interesso pelas pessoas que moram no mar e pela forma como vivem. Deixar o trânsito da cidade, o ritmo urbano, a poluição e o estresse e viver entre o azul do céu e do oceano parece uma ideia sedutora para qualquer pessoa insatisfeita em morar entre asfalto e arranha-céus. A cada dia eu encontro mais brasileiros que venderam casa, empresa, se demitiram e compraram um veleiro. Também já conheci quem decidiu construir o próprio. Algumas pessoas vão mais preparadas, outras menos. Mas, muitas vezes, descobrem depois que habitar uma casa flutuante vai muito além de velejar.

Perguntei para amigos velejadores quais são os maiores desafios de morar a bordo. Há muitas coisas que não sei e não vivi, e com certeza há muitas outras questões que não aparecem no texto. Mas talvez você se surpreenda os 6 principais desafios destacados a seguir:

1. A VIDA DO BARCO É QUASE TÃO IMPORTANTE QUANTO A SUA PRÓPRIA
A liberdade é uma condição relativa. Estar em um veleiro permite conhecer muitos lugares, mas isso só é possível se o barco está preparado. O tempo todo coisas quebram, o tempo todo há manutenção, trocas e concertos. Segundo o velejador Bruno Morino, do Speranza, o tempo que se passa arrumando o barco é pelo menos 5x maior do que se passa velejando, mesmo se o barco é novo. Para a velejadora Carina Joana, do Criloa, se tem liberdade para decidir como usar o tempo, mas isso não significa que há ócio. A vida a bordo pede um grande volume e diversidade de fazeres.

2. A ÁGUA TEM PESO, VOLUME E FIM
Os recursos são finitos, e toda a infraestrutura existente é gerida pelos habitantes do veleiro. Existem algumas formas de lidar com a limitação de água: Usar calhas para captar chuva, ligar um dessalinizador, tomar banho no mar (ou não tomar), encher galões com água de rios, nascentes ou geleiras, depender de marinas para abastecimento. Mas seja qual for a solução, é consenso que o volume de água disponível/consumida define a autonomia de um barco. O racionamento é uma condição natural, e a forma de enfrentá-lo é de livre escolha e dependem dos recursos financeiros, da criatividade e da capacidade da pessoa de se adaptar às necessidades.

3. GERIR A ENERGIA DO BARCO E A PRÓPRIA
Quem mora em barco presta atenção no consumo energético de tudo. Dos aparelhos elétricos ao consumo do próprio corpo. Como me disse o Bruno, é extremamente importante se planejar para que o seu consumo seja compatível com sua capacidade de produção e armazenamento.

As fontes de energia elétrica podem ser painéis solares, geradores a diesel ou eólicos, e as baterias precisam de atenção. Muitos velejadores não têm geladeira, e encontram alternativas para conservar os alimentos. Fiquei fascinada com as conservas de vinagre que o Elio Somaschini tinha no veleiro Crapun. Com elas, poderia comer legumes frescos mesmo após semanas no mar. Em uma travessia, também é importante saber gerir as horas de sono, uma vez que imprevistos estão na previsão.

4. ESTAR NO MESMO BARCO É ESTAR NO MESMO BARCO
A velejadora Carina Joana mantém o Criloa sozinha. Quando se mudou para o barco, levou também a cadela Abigail. Morar com um animal só é possível porque a Abigail se comporta como tripulante: sabe onde ficar em cada situação, e usa colete ao andar pelo convés. Acredito que é importantíssimo que todas as pessoas (1) absorvam a cultura do barco, (2) se comuniquem com clareza, (3) sejam adaptáveis e (4) proativas. (5) Conflitos são normais, mas precisam ser passageiros. Quanto menor o barco, mais importante saber ceder e cooperar. Todas as pessoas podem ajudar, não importa a idade ou a experiência. No diário de viagem do veleiro Planckton, a Cecília e o Fábio contam que o filho, Igor, ainda era um bebê e já se oferecia para ajudar os pais. A postura preparada e proativa é bem vinda em qualquer pessoa.

5. CADA COISA MORA EM SEU LUGAR
Debaixo da cama pode estar a dispensa. Atrás do sofá estão as peças de reposição. A quantidade de coisas que cabe em um veleiro é inacreditável. Mas cada objeto tem um lugar exato. Segundo a Carina, “Uma das grandes tarefas apresentadas pelo barco é descobrir o lugar de cada coisa. São meses trabalhando nessa descoberta e desenvolvendo a disciplina necessária para manter o barco em ordem e não competir espaço com as coisas.”

6. SABER LER E INTERPRETAR OS SINAIS DO AMBIENTE
As nuvens dão a previsão do tempo. O vermelho do sol poente fala sobre a tempestade. Pelas ondas é possível ler o vento. A capacidade de pescadores de interpretar os sinais do meio pela observação é extremamente valiosa. Mas, além da experiência intransferível, ferramentas como barômetro, cartas náuticas, tábua de marés, cartas sinóticas, profundímetro e etc. são úteis e necessárias para navegar com segurança por lugares desconhecidos.

A Carina me contou: “O barco é espaço e é corpo ao mesmo tempo: é a casa de alguém, é também um corpo que habitará enseadas, cais, praias, caminhos e vai se relacionar de formas adaptadas à cada lugar e vizinhança.” E, sendo um corpo, o veleiro fala o tempo todo, “pelos os cabos batendo no mastro e esticando na proa, os motores que passaram longe mas cantam numa vibração suave no casco.” Ela aprendeu a entender o som da vida marinha se desenvolvendo no fundo do barco. “São muitos sons circulando quem está a bordo e conhecer cada um deles traz conforto e segurança.”

Se você tem o sonho de morar numa cidade flutuante, espero que essa lista te ajude a se preparar. Se não, espero que esse texto sirva para perceber que cada banho quente, cada legume fresco, cada lâmpada acesa com facilidade é um presente da viagem que é morar em terra firme.