Encalhamos por querer
- Tamara
Eu não podia acreditar. Perguntei pra minha mãe se era verdade que estávamos encalhados. Ela fez que sim. O fundo era tāo raso que eu podia andar com água nas canelas. Estávamos em 7 no veleiro: minha família, Rogério e Flávio. Meu pai, tenso, não pensava nas providências a tomar, tomava-las. Iríamos sair dali, mesmo que os mastros flexíveis tocassem a água. Tocavam. Não entendi o que ia se passava, mas senti que quanto mais longe ficasse do foco de resolução de conflitos, melhor.
Engraçada essa reação. Já não era a primeira vez que fazíamos essa viagem, nem a primeira vez que encalhamos em algum lugar perigoso. Ainda assim, não achei que estivesse a meu alcance a capacidade de contribuir com a solução do problema. Nossos pais nos levaram pro mundo dos barcos com sólidos rastros de experiências e pesadas bagagens de noção. Eu, tão pequena, tão novata nessa condição de existir, subestimei a mim.
Ao estarmos excluídos das dinâmicas habituais do mundo globalizado, mesmo que por um breve período, me esqueci do que inovações tecnológicas recentes trouxeram pra gente. Meu pai começou a navegar num tempo onde o sol e estrelas julgavam o direito dele em saber onde estava. 20 minutos de cálculos, consultas de fórmulas e tabelas, pra ter alguma vaga ideia sobre seu avanço ou retrocesso no mar. 25 anos depois, sua filha de 8 anos era capaz de bater os olhos em uma tela colorida e PIMBA! 68°11’S, 067°00’W , Baía Marguerite.
Não são precisos livros ou especialistas para aprender nós ou regras de balisamento. Aulas virtuais, vídeos no youtube, manuais em pdf; a ausência de um professor não é limitadora. Sobre o presente, passado e futuro metereológico, a bola de cristal vêm por email em nosso telefone via satélite. Enfim, temos hoje a estranha sensação de poder aprender a navegar sem nunca ter entrado num barco. Claro que essa sensação é ainda irreal, porque infinitas são as variáveis que tornam, todo dia, nosso saber sobre esse meio de transporte em xeque. Porém, ela nos oferece a vantagem de ir atrás do que nos interessa com mais independência de acasos ou terceiros.
O casco de alumínio ainda oscilava sobre o fundo. Fazia tanto barulho que era melhor correr o risco e ficar do lado de fora, tomando cuidado pra não atrapalhar os procedimentos de desencalhe. Observei o Flávio, no bote, empurrando o casco, meu pai levantando o leme pra não bater, e forçando a movimentação das 100 toneladas.
Percebi que, num tempo onde a informação parece tão acessível o tempo todo, é fácil nos distrairmos e deixarmos pra depois coisas que queremos aprender. É fácil fugir de conflitos, e perder oportunidades com medo de se ver ignorante na frente dos mais experientes. Uma vantagem, acredito, é a certeza de que o mundo caminha para a simplicidade. Porém, por confiar nela, sonhamos com mais chegadas do que damos passos.
Aquela pedra não estava cartografada. Talvez um dos últimos redutos de terra desconhecida no mundo. Marcamo-la na carta náutica com um X. Na minha mente, também fiz uma marcação: no ponto mais raso em que já pousei no mar, nasceu minha ânsia por profundidade. Perdi o medo do não saber, desde que não deixasse o aprender pra outra hora, desde que desse valor à experiência, sem subestimar a ausência dela – a maré subiu, saímos.