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XX (4)

Desencontro

-Tamara

Aquele gesto fatal decerto melhor seria se mantido omisso, não fosse a indelicadeza gratuita em declarar, por intermédio de gerados, certas conquistas pessoais post mortem. Devido ao desejo de ambas as partes em manter supostas afinidades, parece-me custoso expor à luz da pena a semente do desconforto — embebido em conveniências. Faz-se necessária a ressalva de que nada tenho contra o intermediador de tal notícia, o qual, ademais, parece-me gente de bem. Dessa forma, proponho-me a discorrer de tal modo que eu mesma possa digerir a causa de tal rodeio memorialístico.

Ao que me lembro, não haviam outros barcos naquela baía rodeada de gelo. Não posso afirmar com absoluta certeza — posto que já são corridos 10 anos desde a data mencionada — mas era um desses lugares que sentem o odor humano poucas vezes num século. A nervosa voz do nosso comandante não deixava dúvida de que aquela era a última chance “Se querem mesmo deixar um tesouro, que o façam antes da partida nos motores”

Mentindo estaria ao afirmar que me lembro do conteúdo do bem, afinal de contas, fizemos o tesouro às pressas, mas me é cristalino que foi, dentro do possível, criteriosa a seleção dos ícones do sacrifício e da alegria de estar lá. Algo como urso de pelúcia, fotos, rolo de filme não revelado, um dente caído na viagem, algum dinheiro e whisky, depositados com desenho e bilhete dentro da caixa pelican neon.

A escolha do lugar foi pensada para não dar margem aos esforços da natureza subtraírem nossa coleção. Checamos a inclinação do solo, a chance de neve, a incidência solar e abandonamos, no ponto escolhido, a caixa laranja e a dúvida sobre jamais voltar pra resgatá-la.

E, de fato, voltamos três anos depois junto à ambição de encontrar nosso bem. A marcação de GPS, a identificação dos marcos de referência e os três dias de tentativa não foram o suficiente para o sucesso da operação de busca. “Devemos dar por encerrada a procura. Não adianta.” As três meninas — já não mais tão meninas — não criam nos pais; de certa forma estava ali o rastro de quando executar esse tipo de ideia tosca ainda fazia sentido.

Era a viagem do achamento, que nunca ocorreu. E por anos frustrou-as o não encontro, ainda não sabiam, desencontro. Até uma tarde de sol em algum lugar como Ilhabela, onde veleiros voam trazendo notícias inesperadas. Mas não foi no mar, não, foi numa rua asfaltada qualquer que um homem cruzou com uma das meninas e disse:

— Meu pai, falecido, encontrou seu tesouro!

Como quem vê cair do céu um piano, a menina pos-se a pensar se o problema era ela ou o mundo. Era o mundo, que prosseguiu.

— Ah, ele não entendeu a caixa e jogou as coisas fora. Tirando o dinheiro… e a garrafa de whisky.

O valor de um tesouro não está no preço das coisas, mas na história que se atribui a ele.

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