Capuccinos e Condomínios
por Tamara
O certo seria ter levado a chave pra disfarçar o fingimento. Mas com duas batidinhas na quina da dobradiça e uma empurrada torta na maçaneta, a porta trancada se abriu. Olhei em volta, acenei para o guarda da rua e entrei na casa da minha avó pontualmente 15 minutos atrasada.
Suas amigas já estavam à mesa, rodeando pães, bolos, xícaras estampadas e coisas que uma avó poria sobre uma mesa ao preparar um encontro para amigas. Oi oi oi, sim, passa rápido, obrigada. Puxei a quarta cadeira e fui envolvida pela discussão. Ela disse que vai me levar pra Itu, pra eu morar num… a senhora, que vamos chamar de I.T., hesitou … numa espécie de condomínio.
Minha avó deu risada. Ela cortava a quina de um sachê individual de cappuccino com uma tesourinha que era guardada dentro do pote de sachês individuais de cappuccino. Interrompeu o procedimento e ergueu os olhos. E o que você respondeu?
I.T.: Disse que pra lá eu só ia no caixão.
Minha avó cortou o riso. Disse H.F.: É mesmo uma questão delicada. Que Deus me perdoe, mas parece que numa certa idade tudo que as filhas querem é mandar a mãe para um depósito de velhinhas em um feudo bucólico longe de São Paulo.
I.T.: A Carmem ficou tentando me convencer… Disse que lá eu também ia poder ir à missa porque dentro do condomínio tem igreja que dá pra ir à pé, que tem um mercado ótimo, e que eu ia fazer amigas porque um grupo de senhoras se reúne diariamente pra conversar, caminhar e fazer atividades. Para eu não me preocupar, que sozinha eu não ficava, muito pelo contrário, e que lá eu ia ter tudo igual, só que melhor e com segurança. Mas não é isso, entendem? É alguma outra coisa que falta.
H.F.: Ai ai, IT. De que adianta ter tudo e não ter ninguém? De que vale morar numa casa linda com jardim, piscina e vista sem ter história ali? Ave Maria, isso me lembra a casa da Marisa em Ubatuba. Toda chique, de arquiteto famoso, disse que agora, no fim da vida, que estava usufruindo do sonho. Foi ela ficar dois meses na casa que entrou em depressão. Nem sei que fim levou, coitada. Mas não adianta. O arquiteto bambambam pode fazer milagre, ela pode morar perto de tudo e fazer mercado à pé, pode ter vista, ouvir passarinho, uma maravilha. Mas, no fim da vida, tudo que a gente quer não dá pra construir, Meu Deus. São nossos cantinhos e nossas migalhas. Pode passar uma fatia fininha do bolo, queridinha? Desse não, o de côco é sua avó que gosta, o meu é o Formigueiro.
Cortei a fatia mais fina que pude. Percebendo a minha dificuldade I.T. falou pra mim baixinho: “Ela pede a fatia fina só pra poder repetir várias vezes”. Minha avó trouxe da cozinha um bolo com recheio e cobertura, certa de que ele animaria o encontro. Arquitetura das camadas construíveis, do des-acaso que pretende-se criador de acasos. Não era isso que falavam elas. Não era o bolo, a questão, mas os quatro furos que assinalavam a passagem de um garfo pra checar o cozimento. Afinal, os espaços de transição não são autores da travessia, os espaços de convite não dão a festa, a preservação dos prédios não preserva a saudade, decerto. Pois que, para elas, o morar não era o edifício, o programa ou qualquer coisa projetável dessa instância. Era, sim, outra coisa: algo entre a porta que se vê trancada e o segredo de quem fez os seus segredos, algo entre o prazer de tomar o cappuccino e a mania de guardar sachês no mesmo pote que a tesoura. Eu não tinha, por sinal, tomado o meu, e frio ele não era igual a quente. Mas tinha um outro gosto e um outro calor, calor de encontrar-se a se encontrar no repente de uma mini festinha no fim de tarde de uma quinta-feira qualquer.