Canal do Varadouro
- Tamara
-fotos: Marina B. Klink
Não sei como convenci meus progenitores a me deixarem a participar dessa viagem. O plano era ir de Guaraqueçaba, uma pequena cidade no Paraná, até Paraty. As 300 milhas serpenteavam por canais e mar aberto, riscados na fé de que as duas bateiras recém construídas seriam valentes o suficiente.
Fui com meus pais até Guaraqueçaba de carro. Aproveitei as 11 horas de viagem pra estudar o caminho e me preparar para que, mesmo no papel de iniciante, eu pudesse dar alguma contribuição. Inclusive porque, se alguma falha troxesse o mau humor ao rosto e tom de voz do meu pai, os 4 metros da bateira não seriam o suficiente para desaparecer de vez.
Jantamos coisas do mar na Mercearia Rodrigues e fomos para a pousada debaixo da chuva. O dia seguinte não amanheceu tão melhor: ventava, chovia e fazia frio. Agradeci com todas as minhas forças aos não muito charmosos toldos de lona azul, que, apesar de atrapalhar a navegação, mantinham secas algumas providências.
Parávamos em alguns horários e pontos estratégicos do canal do varadouro para comer; mas enquanto não chegava a hora ou lugar, crescia nossa coleção de potes vazios de palmitos locais.
A tripulação era composta por 6 pessoas mais 2 rotativos, divididas em 2 barcos quase iguais. Ambos foram feitos pelo João, mestre naval tetra campeão nas tradicionais corridas de canoa da região. Ele me contou que os barcos são feitos, em sua maioria, longe do mar, no meio da floresta. Ele junta um grupo de pessoas e sai a procura da madeira. Ao redor dela, fazem um acampamento que habitam até o barco ficar pronto. Juntam-se reforços extras pra levar o recém nascido pro berço em que ele vai, com sorte, pra sempre, morar.
“E por que o barco têm que ser bonito, João?”
“Ah, tem que ser, né? Chama a atenção”
Num tempo onde tudo é padronizado, de plástico, fibra ou alumínio, fiquei me perguntando qual seria o sentido da estética num objeto tão funcional. Mas o barco, por algum motivo, conserva a importância autorial e artística do mestre que, sem lápis ou papel, o concebeu.
O canal do varadouro era cheio de truques. Vez ou outra nos descobríamos a um ou dois palmos acima do fundo. Nossa maior fonte de informação era um ipad mini, na cabine de comando improvisada entre 2 caixotes de plástico encaixados. As bateiras apostavam uma eterna corrida. Durante meu turno no leme, fiquei com um pouco de medo de entrar no lugar errado: a atenção à carta às vezes se perdia durante a observação das aves e árvores que cercavam a passagem, e era dificil manter o foco por tanto tempo andando a poucos nós, quase sempre, em linha reta. De repente, a bateira concorrente estaciona no meio do canal. Na ingenuidade de quem escolhe sobrevoar a água mais escura, talvez com mais peixes pra ver, acabei por escapar de 2 enormes bancos de areia. Já nosso oponente, não teve a mesma sorte.
A moral ligeiramente mais elevada me garantiu uma participação maior que a prevista no trajeto. Acabei ficando em Cananéia, porque eles acharam que o mar aberto era “perigoso demais”. Não gostei muito do desembarque forçado, mas tive que aceitar. Segundo relatos, o maior problema não foi o mar, mas esteve dentro do barco o tempo todo. Problemas de saúde diversos acometeram grande parte da tripulação, que fez uma parada excepcional no Guarujá. Faz parte das decisões de viagem entender que talvez piores limitadores estão na humanidade, e não na máquina.
Em duas semanas, sob os coqueiros e areia branca da marina do engenho, as bateiras gêmeas chamavam atenção em Paraty.