Publicações

na verdade

Na verdade,

- Tamara

O sonho é um monte de neve guardado num potinho. Na minha jornada pela superfície da Terra, colecionei suspiros, vi derreterem-se tesouros e reguei a fé que eu mesma assassinei. Minhas utopias materializadas tornaram-se desilusões banais. E me perguntei se era assim que as estrelas morriam, se fazendo visíveis. Mas não. Algumas estrelas expostas na areia da praia podiam  viver, se devolvidas ao mar a tempo.

Nesta mesma areia, desenhei os veleiros que via partir. Sabia que encontravam gelo, neve, ondas gigantes e baleias maiores ainda, e me enfiava nos barcos através dos rabiscos que fazia ali. Desenhos, desígnios, intenções. E tais intenções foram – quase que magicamente – atendidas quando veio do pai um convite.

— Quer viajar comigo?

Minha Nossa. Tão nova na insciência de tentar entender o mundo, senti tangível a realização de um sonho. Era óbvio que eu queria ir – queria ouvir o timbre dos meus desenhos. Assim que a maré subiu, os projetos saíram do papel e se conformaram no veleiro que me convidara pra viajar.

Preenchi a meia eternidade do trajeto contando ondas, aves marinhas, e ripas* de madeira do teto da cabine. Na verdade, contei mais ripas do que qualquer outra coisa, dado o balanço do barco. Tendemos a vegetar quando a boca está sob a constante ameaça de receber o almoço vindo do estômago.

Não me sentia sozinha, muito pelo contrário. Tinha a impressão de que na minha cabine estavam todos os motores e bombas do barco, rugindo. A única forma de fazer o silêncio ser ouvido, o barco sair da embriaguez e as ripas fazerem jus à sua desimportância, era manter a fé de que o projeto seria construído.

Eu tinha o privilégio do tempo imensurável. O relógio era inútil se não para entender a altura do sol. A velocidade nada dizia sobre o progresso cartográfico, uma vez que tempestades podiam vir de repente. Por isso, pude passar dias compilando mentalmente as imagens estimadas da terra dos viajantes, sem saber o quanto elas me frustrariam.

Nessas imagens, o vento não era motivo de dor. Também não era penoso o trajeto. Não pensei que a perda de sentido nos dedos seria preocupante. Não chorei de frio. Eram outras as velocidades, as escalas. E entrava agora pelas minhas narinas, pela minha boca, pelos furos dos pelos do meu braço, um odor glacial. Seco. E me dei conta de que mais que tudo, meu sonho não tinha cheiro.

Ao pisar em terra firme, deixei meu sonho ‘concretar-se’. Toquei a neve e senti a frustração da mãe que vê crescer no filho autonomia. Meu projeto assumiu uma identidade que não previu meu traço.

Peguei um punhado de neve, uma mini monte. A fé move montanhas. E enfiei num potinho que trazia no bolso do casaco. Levaria meu sonho comigo, acontecido.

Dentro do barco, peguei o recipiente e o examinei antes de por na mala. Só tinha água. Sonhos realizados não os são. Abri a tampa e joguei o seu conteúdo no ralo da pia.

Não movi montanhas com minha fé – aquela mini montanha tinha me movido. E lembrei de jogar a estrela de volta pro mar pra dar a ela a chance de viver. Voltamos.

 

*ripas – tiras compridas e estreitas de madeira

GOSTOU? AQUI TEM MAIS